Hoje não iriei versar sobre a vida e minhas percepções sobre ela. Em vez disso, escolho contar uma história. Uma história que irá versar à sua maneira, prosaica, sobre o que muitos de nós experimentam.
O Pássaro e a Saudade
Um
pássaro assovia desavisado na janela da casa com um belo jardim. Ele não sabe.
Talvez a primavera o tenha feito frívolo e descuidado. Ele não sabe que sob
seus ligeiros pés algo mais acontecia. Mas quem se importaria? Todos da
vizinhança se ocupavam de seus afazeres cotidianos, banais.
E os
dois estavam ali, entre flores banais.
O
pássaro descreve um voo veloz em direção ao solo, mirando aparentemente o nada,
e pousa plumo sobre uma cercazinha de meia altura, toda vestida de um
verde-vivo das trepadeiras, que protegia o jardim. E ele observa aquela cena,
como se entendesse tudo o que passava ali.
Palavras
não eram ditas, sequer balbuciadas, por qualquer um dos dois. Somente as mãos
tremiam, tremiam, como se ardessem em febre. Talvez fosse o Sol sobre suas
cabeças. Ele ardia como nunca. Tornava quente e intragável o ar que insistia em
lhes faltar aos pulmões. Já eram quase dez e quinze. Já era hora.
O pássaro
assovia mais uma vez, como se indicasse a última chamada para o embarque.
O
rapaz se levanta do banco amarelado pelo sol, e dá um passo. Decide não olhar
para trás. Mas o delicado vestido azul-celeste que ela usa prende seus olhos. O
vestido era todo feito à mão. Pelas mesmas mãos, delicadas e firmes, que um dia
indicaram que, na imensidão da vida, as estrelas ainda brilham e fazem do céu
um lugar mais acolhedor. Os seus cabelos eram de um castanho-mel tão intenso
sob aquele sol forte, que tornava cinza todas as outras cores daquele jardim.
Ele nunca havia reparado aquele brilho. A pele branca, fluida como um lençol
fino que envolve um corpo nu, rivalizava com o reflexo puro dos olhos
amendoados, acastanhados. Ele se sentia imerso naqueles olhos, naqueles lagos serenos
e enevoados. Ambos se olhavam. Olhos fitos e imóveis. Ele já não suportava
mais.
Seus
pés fincavam o solo úmido que havia sido regado pela chuva da última madrugada.
Sua mente se revolvia em pensamentos intermitentes e imagens de um passado-presente
que se tornaria daqui uns tempos numa memória-futura. Sua cabeça doía. Ele
inclina a cabeça para trás e olha o céu. Apenas uma nuvem grande e gorda
vadiava trôpega, carregada de gotas. Frias e insípidas. Essas, bem diferentes
daquelas que escorriam sobre o rosto daquele rapaz. Estas eram quentes e
salgadas.
O
pássaro, que observara a tudo em silêncio, batuca a cercazinha de madeira
coberta de folhas, alimentando-se das numerosas formigas que passam por ali.
Elas seguem indo, sem aviso e sem medo. Apenas prosseguem. Não param. Não
deixam de ir. Seguem a vida.
Ela,
de uns vinte e poucos anos, cuidava de um jardim de ipês amarelos e rosas
vermelhas. Cores que se misturavam ao quadro daquele momento. Ela observa
atenta aos últimos passos de seu amado. Ele prossegue, como as formigas, apenas
prossegue. Os seus sapatos, os mesmos de quando se conheceram, marcam o solo
fresco e esse tinge de marrom a sola dos seus sapatos. Ele havia pedido que
plantasse ali um gramado baixo, desses comuns, e ela lhe negara. Agora, aquele
pedido tintilava como um sino em sua cabeça. O remorso badalava em sua mente. E
ela observava. Não havia palavras. Não haviam os sussurros que outrora haviam
junto ao ouvido. Ela só ouvia o batucar do pássaro que insistia em tirar proveito
da vida. E ela via a sua vida indo embora.
O
pássaro, satisfeito e orgulhoso, prepara-se para alçar voo em busca de outros
ares, outras vidas. Mas atenta a outro ato. O quarto ato.
O
rapaz está de joelhos em frente à moça, que agora se curva suavemente em
direção a ele. Mas ele não sabe o que dizer. Sua mente, confusa pelo pensamento
insano que o trouxera ao chão, não responde ao seu corpo suado pelo calor
daquele momento. Já passava das dez e quinze. A hora era agora. Suas mãos tocam
o rosto dela, molhado pelo suor. Descem pelos seus braços de penugem dourada e
translúcida. E repousam sobre as mãos ainda trêmulas, muito quentes, da sua
amada. Elas também têm algo a dizer, mas permanecem mudas. A voz não sai, mas
os olhos gaguejam.
Ele procura
por algo. Olha ao redor como a procurar algo que agora lhe seria vital. Ele
tira sua mão esquerda de sobre as mãos dela e a põe sob o banquinho branco-amarelado.
Retira de lá um vaso de barro e desenterra com a mão uma suja caixinha
vermelha. Havia posto ali há meses. Pretendia usá-la, sim, mas em outra ocasião
menos dramática. Talvez num dia desses de céu estrelado, lua cheia e brisa sem
cobertor. Quem sabe? Mas a vida (sempre esta maldita) lhe roubara a
oportunidade. Agora era a hora.
Ele
levanta lentamente a caixinha vermelha. E finalmente a abre sobre a sua mão
suja de barro. Segue-se um eterno instante de contemplação. Os fôlegos se unem
em um coro uníssono. Os corpos, ambos suados, inclinam-se um sobre o outro e se
fecham. O destino daquelas duas almas converge em um pacto vitalício, um
desfecho selado por um beijo.
Ela
retira suas mãos de sob as dele, as põem, sujas, ao redor da sua nuca e beija
sua testa salgada. Ele se levanta e a abraça. Ela responde com um suspiro e
repousa em seu peito. Há muito se passou das dez e quinze. Esta é a hora deles.
Ela iria com ele ao outro lado do mundo, mas o seu mundo estaria com ela. E o
caminho que ele trilharia só já não parece mais tão deserto. Teria uma bela
vista para admirar, colinas verdes e onduladas sob a luz dos olhos dela. Ele
estava feliz. Ela estava feliz.
O
pássaro apressou-se e voou. Nesse momento, um avião risca o céu. O casal
observa atento o avião e o pássaro e dá adeus à saudade.
Matheus de A. Queiroz
Pessoal, postem os comentários aqui. Escolham caixinha "Anônimo" e comentem deixando o nome. Abraços!
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