"Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor."

sábado, 18 de outubro de 2014

O Pássaro e a Saudade


Hoje não iriei versar sobre a vida e minhas percepções sobre ela. Em vez disso, escolho contar uma história. Uma história que irá versar à sua maneira, prosaica, sobre o que muitos de nós experimentam. 



O Pássaro e a Saudade


Um pássaro assovia desavisado na janela da casa com um belo jardim. Ele não sabe. Talvez a primavera o tenha feito frívolo e descuidado. Ele não sabe que sob seus ligeiros pés algo mais acontecia. Mas quem se importaria? Todos da vizinhança se ocupavam de seus afazeres cotidianos, banais.
E os dois estavam ali, entre flores banais.
O pássaro descreve um voo veloz em direção ao solo, mirando aparentemente o nada, e pousa plumo sobre uma cercazinha de meia altura, toda vestida de um verde-vivo das trepadeiras, que protegia o jardim. E ele observa aquela cena, como se entendesse tudo o que passava ali.
Palavras não eram ditas, sequer balbuciadas, por qualquer um dos dois. Somente as mãos tremiam, tremiam, como se ardessem em febre. Talvez fosse o Sol sobre suas cabeças. Ele ardia como nunca. Tornava quente e intragável o ar que insistia em lhes faltar aos pulmões. Já eram quase dez e quinze. Já era hora.
O pássaro assovia mais uma vez, como se indicasse a última chamada para o embarque.
O rapaz se levanta do banco amarelado pelo sol, e dá um passo. Decide não olhar para trás. Mas o delicado vestido azul-celeste que ela usa prende seus olhos. O vestido era todo feito à mão. Pelas mesmas mãos, delicadas e firmes, que um dia indicaram que, na imensidão da vida, as estrelas ainda brilham e fazem do céu um lugar mais acolhedor. Os seus cabelos eram de um castanho-mel tão intenso sob aquele sol forte, que tornava cinza todas as outras cores daquele jardim. Ele nunca havia reparado aquele brilho. A pele branca, fluida como um lençol fino que envolve um corpo nu, rivalizava com o reflexo puro dos olhos amendoados, acastanhados. Ele se sentia imerso naqueles olhos, naqueles lagos serenos e enevoados. Ambos se olhavam. Olhos fitos e imóveis. Ele já não suportava mais.
Seus pés fincavam o solo úmido que havia sido regado pela chuva da última madrugada. Sua mente se revolvia em pensamentos intermitentes e imagens de um passado-presente que se tornaria daqui uns tempos numa memória-futura. Sua cabeça doía. Ele inclina a cabeça para trás e olha o céu. Apenas uma nuvem grande e gorda vadiava trôpega, carregada de gotas. Frias e insípidas. Essas, bem diferentes daquelas que escorriam sobre o rosto daquele rapaz. Estas eram quentes e salgadas.
O pássaro, que observara a tudo em silêncio, batuca a cercazinha de madeira coberta de folhas, alimentando-se das numerosas formigas que passam por ali. Elas seguem indo, sem aviso e sem medo. Apenas prosseguem. Não param. Não deixam de ir. Seguem a vida.
Ela, de uns vinte e poucos anos, cuidava de um jardim de ipês amarelos e rosas vermelhas. Cores que se misturavam ao quadro daquele momento. Ela observa atenta aos últimos passos de seu amado. Ele prossegue, como as formigas, apenas prossegue. Os seus sapatos, os mesmos de quando se conheceram, marcam o solo fresco e esse tinge de marrom a sola dos seus sapatos. Ele havia pedido que plantasse ali um gramado baixo, desses comuns, e ela lhe negara. Agora, aquele pedido tintilava como um sino em sua cabeça. O remorso badalava em sua mente. E ela observava. Não havia palavras. Não haviam os sussurros que outrora haviam junto ao ouvido. Ela só ouvia o batucar do pássaro que insistia em tirar proveito da vida. E ela via a sua vida indo embora.
O pássaro, satisfeito e orgulhoso, prepara-se para alçar voo em busca de outros ares, outras vidas. Mas atenta a outro ato. O quarto ato.
O rapaz está de joelhos em frente à moça, que agora se curva suavemente em direção a ele. Mas ele não sabe o que dizer. Sua mente, confusa pelo pensamento insano que o trouxera ao chão, não responde ao seu corpo suado pelo calor daquele momento. Já passava das dez e quinze. A hora era agora. Suas mãos tocam o rosto dela, molhado pelo suor. Descem pelos seus braços de penugem dourada e translúcida. E repousam sobre as mãos ainda trêmulas, muito quentes, da sua amada. Elas também têm algo a dizer, mas permanecem mudas. A voz não sai, mas os olhos gaguejam.
Ele procura por algo. Olha ao redor como a procurar algo que agora lhe seria vital. Ele tira sua mão esquerda de sobre as mãos dela e a põe sob o banquinho branco-amarelado. Retira de lá um vaso de barro e desenterra com a mão uma suja caixinha vermelha. Havia posto ali há meses. Pretendia usá-la, sim, mas em outra ocasião menos dramática. Talvez num dia desses de céu estrelado, lua cheia e brisa sem cobertor. Quem sabe? Mas a vida (sempre esta maldita) lhe roubara a oportunidade. Agora era a hora.
Ele levanta lentamente a caixinha vermelha. E finalmente a abre sobre a sua mão suja de barro. Segue-se um eterno instante de contemplação. Os fôlegos se unem em um coro uníssono. Os corpos, ambos suados, inclinam-se um sobre o outro e se fecham. O destino daquelas duas almas converge em um pacto vitalício, um desfecho selado por um beijo.
Ela retira suas mãos de sob as dele, as põem, sujas, ao redor da sua nuca e beija sua testa salgada. Ele se levanta e a abraça. Ela responde com um suspiro e repousa em seu peito. Há muito se passou das dez e quinze. Esta é a hora deles. Ela iria com ele ao outro lado do mundo, mas o seu mundo estaria com ela. E o caminho que ele trilharia só já não parece mais tão deserto. Teria uma bela vista para admirar, colinas verdes e onduladas sob a luz dos olhos dela. Ele estava feliz. Ela estava feliz.
O pássaro apressou-se e voou. Nesse momento, um avião risca o céu. O casal observa atento o avião e o pássaro e dá adeus à saudade.



Matheus de A. Queiroz

Um comentário:

  1. Pessoal, postem os comentários aqui. Escolham caixinha "Anônimo" e comentem deixando o nome. Abraços!

    ResponderExcluir