"Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor."

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Poeta de gestos

Cena de "Le Fabuleux Destin d'Amelie Poulain"


Poeta de gestos

Desconheço as palavras tais
Que paridas orgulhosas
En-cantariam o mundo,
Vistoso mundo.

Desconheço-as.
Nunca as conheci.
Nem sei se as conhecerei.
(Talvez sejam antissociais)

Enquanto isso, embromo com outras menos vistosas.
E escrevo, escrevo e escrevo.
Em fôrmas de bolo.

Canto mudo o mundo, o torcer dos lábios e o entrefechar de olhos.

Sou poeta de gestos.

Das coisas que esquecemos

                                    A persistência da memória, de 1931, Salvador Dali
                                            

Das coisas que esquecemos



Das memórias dissipadas,
Distantes e borradas,
Jaz o antes signo,
Pétrea certeza,
Um sorriso.

Melancólico fim,
As memórias já não são.
Desenervadas, cauterizadas,
Houveram.
Em outra vida.

Pessoas passam em um bonde.
(ou será um metrô?)
Esquecem-se de si mesmas.
Importa mais não esquecer a próxima parada.
Tolas, e se não houver?
Haverá o esquecimento.

Escrevo para não esquecer
O paradoxo profundo
Das inquietudes desta vida,
Da serenidade deste céu azul,
E de que os mortos não choram.

Matheus de A. Queiroz

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Anticatarse


A noite é longa; e a alma, leve.



Sir Frank Dicksee, Romeo and Juliet



Anticatarse


Finas e sedosas mãos pousam suaves sobre o parapeito de meia-altura que se estende por toda extensão da varanda. Estava à espera. Uma espera que poderia durar o cumprimento de toda uma vida de autonegação. Seus pensamentos estavam flutuando, à deriva, naquele oceano de calmaria, sol fraco.  Seus pés, cansados pelo dia de trabalho, já não reclamavam dos calos na sola dos pés, que incomodam até o mais otimista dos espectadores. Sim, você, espectador. Afinal, a quem escrevo esta história? De certo não a mim, pois neste momento chego à cena.

Meus pés, também cansados pelos longos passos,  estão em chamas e meus sapatos, desgastados. Encontro o seu olhar no primeiro andar daquele prediozinho amarelado de pintura carcomida pelo tempo, com pedaços já faltando às paredes. Havia ido lá diversas vezes antes de decidir me mudar para outro estado a serviço do exército como médico militar. Sempre percorria o mesmo caminho. Passava pela portaria, onde o porteiro sempre comentava algo sobre a insegurança da rua, subia as escadas em direção ao jardim com palmeiras e ipês amarelos, caminhava, caminhava, caminhava, até passar pela nossa palmeira, sim, nossa palmeira grafada com as nossas iniciais, “M e T”, dobrava à direita no fim da trilha e andava por mais cinco ipês até o apartamento. Tudo estava lá. Da mesma forma como há dois anos. Nada mudara desde que gravamos nossos nomes naquela palmeira. Levanto os olhos e encontros os olhos dela. Olhos de saudade e felicidade. Olhos que não havia esquecido durante esses longos anos.

Apesar da distância, os seus olhos enxergavam bem e viram chegar de longe aquele rapaz ofegante. A hipermetropia, afecção oftalmológica que só afetava sua visão para a escrita e coisas feitas à mão, não impediu o longo suspiro de saudade dado. As lágrimas rolavam no rosto, acumuladas por dois anos de saudade e solidão, e o seu gosto salgado se confundia com o sabor de café que emanava das frestas das casas naquele fim de tarde. Suas mãos, agora, ao peito tremiam levemente e se sobrepunham sobre o coração acelerado. Desejava pular da  sacada para justamente ser amparada em sua queda pelos braços daquele que lhe prometera sempre o impossível, mas o impulso foi substituído por paralisia que a colocou em espera até a primeira palavra que eu pronunciaria. E ela esperou paciente, por mais uma eternidade a minha primeira palavra.

Estava ainda ofegante pela corrida que havia dado até o apartamento. O fôlego faltava devido a corrida, sim, mas ainda mais por encontrá-la esperando-me à sacada, imóvel. Ao mesmo tempo, as palavras pareciam brigar em meus pulmões para serem verbalizadas, mas nenhuma conseguia vencer o embate e ser pronunciada. Não sabia ao certo o que dizer. Talvez fosse melhor nem dizer nada. Apenas deixar fluir o momento,mas uma frase conseguiu se libertar da batalha, e essa era a que queria dizer: “Casa comigo?”. Ouvi um choro e uma palavra ao longe. Não soube distinguir e sentei-me em um banquinho de concreto para recuperar o restante do fôlego. Mais uma vez ouvi uma palavra, mas agora entendia: “Sim!”. O ar agora penetrava sem resistência em meus pulmões. Estava mais leve que o ar. Podia voar sem problemas. Meus pés não tocavam o chão.

A paralisia dela se tornou em frenesi ao ouvir aquela frase. Não entendera o motivo da volta dele assim, tão de repente. O período de trabalho dele na Amazonia só terminava em um mês. Não esperava nada disso. Suas mãos cobriam seu rosto, agora inundado em lágrimas. Seus pés, descalços pela surpresa e o aviso de ultima hora, tornaram a se movimentar e agora corriam ligeiros pelas escadas, descendo o lance de escadas praticamente num pulo só. Ao tocar no piso úmido e irregular do jardim, deu-se conta que havia chegado bem perto daquele que havia agora prometido casar. Ela o abraçou e o beijou.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Poesia Vermelha





Poesia Vermelha



Observei, e só então vi
O Sol da manhã quente, sereno
Entre nuvens paradas, ao vento
Vida-luz, redentora luz.

Ouvi, e só então escutei
O silêncio mudo da Palavra,
Poesia vermelha,
Papel escrito.

Senti, e só então pensei
O anseio pelo Eterno
A completude pelo Infinito.
O ser-não-ser deste mundo.

Morri, e só então vivi
A Vida que é vida
Das mãos marcadas
Do Poeta de sangue.

sábado, 18 de outubro de 2014

O Pássaro e a Saudade


Hoje não iriei versar sobre a vida e minhas percepções sobre ela. Em vez disso, escolho contar uma história. Uma história que irá versar à sua maneira, prosaica, sobre o que muitos de nós experimentam. 



O Pássaro e a Saudade


Um pássaro assovia desavisado na janela da casa com um belo jardim. Ele não sabe. Talvez a primavera o tenha feito frívolo e descuidado. Ele não sabe que sob seus ligeiros pés algo mais acontecia. Mas quem se importaria? Todos da vizinhança se ocupavam de seus afazeres cotidianos, banais.
E os dois estavam ali, entre flores banais.
O pássaro descreve um voo veloz em direção ao solo, mirando aparentemente o nada, e pousa plumo sobre uma cercazinha de meia altura, toda vestida de um verde-vivo das trepadeiras, que protegia o jardim. E ele observa aquela cena, como se entendesse tudo o que passava ali.
Palavras não eram ditas, sequer balbuciadas, por qualquer um dos dois. Somente as mãos tremiam, tremiam, como se ardessem em febre. Talvez fosse o Sol sobre suas cabeças. Ele ardia como nunca. Tornava quente e intragável o ar que insistia em lhes faltar aos pulmões. Já eram quase dez e quinze. Já era hora.
O pássaro assovia mais uma vez, como se indicasse a última chamada para o embarque.
O rapaz se levanta do banco amarelado pelo sol, e dá um passo. Decide não olhar para trás. Mas o delicado vestido azul-celeste que ela usa prende seus olhos. O vestido era todo feito à mão. Pelas mesmas mãos, delicadas e firmes, que um dia indicaram que, na imensidão da vida, as estrelas ainda brilham e fazem do céu um lugar mais acolhedor. Os seus cabelos eram de um castanho-mel tão intenso sob aquele sol forte, que tornava cinza todas as outras cores daquele jardim. Ele nunca havia reparado aquele brilho. A pele branca, fluida como um lençol fino que envolve um corpo nu, rivalizava com o reflexo puro dos olhos amendoados, acastanhados. Ele se sentia imerso naqueles olhos, naqueles lagos serenos e enevoados. Ambos se olhavam. Olhos fitos e imóveis. Ele já não suportava mais.
Seus pés fincavam o solo úmido que havia sido regado pela chuva da última madrugada. Sua mente se revolvia em pensamentos intermitentes e imagens de um passado-presente que se tornaria daqui uns tempos numa memória-futura. Sua cabeça doía. Ele inclina a cabeça para trás e olha o céu. Apenas uma nuvem grande e gorda vadiava trôpega, carregada de gotas. Frias e insípidas. Essas, bem diferentes daquelas que escorriam sobre o rosto daquele rapaz. Estas eram quentes e salgadas.
O pássaro, que observara a tudo em silêncio, batuca a cercazinha de madeira coberta de folhas, alimentando-se das numerosas formigas que passam por ali. Elas seguem indo, sem aviso e sem medo. Apenas prosseguem. Não param. Não deixam de ir. Seguem a vida.
Ela, de uns vinte e poucos anos, cuidava de um jardim de ipês amarelos e rosas vermelhas. Cores que se misturavam ao quadro daquele momento. Ela observa atenta aos últimos passos de seu amado. Ele prossegue, como as formigas, apenas prossegue. Os seus sapatos, os mesmos de quando se conheceram, marcam o solo fresco e esse tinge de marrom a sola dos seus sapatos. Ele havia pedido que plantasse ali um gramado baixo, desses comuns, e ela lhe negara. Agora, aquele pedido tintilava como um sino em sua cabeça. O remorso badalava em sua mente. E ela observava. Não havia palavras. Não haviam os sussurros que outrora haviam junto ao ouvido. Ela só ouvia o batucar do pássaro que insistia em tirar proveito da vida. E ela via a sua vida indo embora.
O pássaro, satisfeito e orgulhoso, prepara-se para alçar voo em busca de outros ares, outras vidas. Mas atenta a outro ato. O quarto ato.
O rapaz está de joelhos em frente à moça, que agora se curva suavemente em direção a ele. Mas ele não sabe o que dizer. Sua mente, confusa pelo pensamento insano que o trouxera ao chão, não responde ao seu corpo suado pelo calor daquele momento. Já passava das dez e quinze. A hora era agora. Suas mãos tocam o rosto dela, molhado pelo suor. Descem pelos seus braços de penugem dourada e translúcida. E repousam sobre as mãos ainda trêmulas, muito quentes, da sua amada. Elas também têm algo a dizer, mas permanecem mudas. A voz não sai, mas os olhos gaguejam.
Ele procura por algo. Olha ao redor como a procurar algo que agora lhe seria vital. Ele tira sua mão esquerda de sobre as mãos dela e a põe sob o banquinho branco-amarelado. Retira de lá um vaso de barro e desenterra com a mão uma suja caixinha vermelha. Havia posto ali há meses. Pretendia usá-la, sim, mas em outra ocasião menos dramática. Talvez num dia desses de céu estrelado, lua cheia e brisa sem cobertor. Quem sabe? Mas a vida (sempre esta maldita) lhe roubara a oportunidade. Agora era a hora.
Ele levanta lentamente a caixinha vermelha. E finalmente a abre sobre a sua mão suja de barro. Segue-se um eterno instante de contemplação. Os fôlegos se unem em um coro uníssono. Os corpos, ambos suados, inclinam-se um sobre o outro e se fecham. O destino daquelas duas almas converge em um pacto vitalício, um desfecho selado por um beijo.
Ela retira suas mãos de sob as dele, as põem, sujas, ao redor da sua nuca e beija sua testa salgada. Ele se levanta e a abraça. Ela responde com um suspiro e repousa em seu peito. Há muito se passou das dez e quinze. Esta é a hora deles. Ela iria com ele ao outro lado do mundo, mas o seu mundo estaria com ela. E o caminho que ele trilharia só já não parece mais tão deserto. Teria uma bela vista para admirar, colinas verdes e onduladas sob a luz dos olhos dela. Ele estava feliz. Ela estava feliz.
O pássaro apressou-se e voou. Nesse momento, um avião risca o céu. O casal observa atento o avião e o pássaro e dá adeus à saudade.



Matheus de A. Queiroz

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Ao outro lado




                                              Foto por Ricardo Borges

Ao outro lado


Vejo-te ao outro lado.
Da rua.
Os automóveis buzinam.
Ao tempo.
E cá estou deste outro lado.
Da calçada descalça.
Vejo-te ao outro lado.

Daquele lado.
Da rua.
Tem pedras.
Pardas.
Brancas e negras.
Em sapatos.
Novos e outros já usados.
Daquele lado.

Cá deste lado.
Da rua.
Tem cores.
Verdes e lilases.
E outros amores.
De outros verões.
Esquecidos.
Ceifados.
Pelo tempo e pelo vento.
Cá deste lado.

Tu. Lá
Eu. Cá
Uma rua.
Uma vida.
Eu e tu.



Matheus de A. Queiroz

domingo, 5 de outubro de 2014

Universo



Universo



Teu sorriso [como se todo ele coubesse neste Universo].




Matheus de A. Queiroz

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Métrica


"À medida que o nosso amor progride, mais nos convencemos de que Deus existe e a alma é imortal." 
Dostoiévski





Métrica



Num mundo medido por números
Meço a vida por palavras.
E o mundo
(que de tão grande não cabe em uma vida)
Vai ficando pequenino,
Do tamanho desta folha de papel,
Branca com as nuvens deste céu.

Meço os olhares
Dos pedestres nas calçadas, indiferentes,
E vejo
Que não alcançam sequer o próximo cruzamento.
Vidas passageiras.
Ruas sinuosas.
Sinais vermelhos.

Meço o amor
Entre dois longevos amantes
Que não se deixa conter
Em dois corpos, duas almas.
(antes os funde em uma só essência)
Ele alcança os séculos distantes e terras futuras.
O amor não tem métrica.

Meço a tristeza
Da própria natureza humana,
Enraizada profunda
Na percepção da imperfeição
Do saber-sofrer.
Calado.
Em silêncio.

Enfim, meço minha métrica
Por estes olhos furtivos
(mas eles veem e vivem)
Esta alma profunda que chama
Ao mergulho nas águas revoltas
Do ser.
Do querer-ser.

No fim, a métrica é esta:
Em cada um há a sua métrica,
Que mesmo assimétrica
(em seus símbolos idiossincráticos)
É um mergulho em cada ser.




Matheus de A. Queiroz

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Informe







Informe aos jornais que já não há
O que publicar nessa república.
(Res publica, coisa pública que nada!)
Covil de ladrões.

Informe aos estudiosos [os que se importem com minha métrica]
Que não houve revolução, tão-pouca evolução
Nesse mundo, tão caolho,
Tão caótico.

Informe aos poetas que não haverá
Pedra sobre pedra, poema sobre poema
Quando este mundo acabar,
E só sobrar nós dois.



Matheus de A. Queiroz

sábado, 27 de setembro de 2014

Medicina


          Estes versos não são de hoje. Acho que os fiz já faz um tempo, mas certamente são relevantes, principalmente nos dias de hoje. Nós aprendemos na faculdade muitas coisas certamente vitais pra formação de um bom médico, mas uma coisa que não nos ensinam com o devido afinco é a ser o mais humano possível. Não vou negar que inevitavelmente a profissão nos torna mais insensíveis ao sofrimento alheio. Seria tolice dizer que o médico deve padecer a cada dor, a cada sofrimento daqueles de quem ele cuida. O papel do médico é ser uma âncora no oceano do sofrimento. Abaixo um retrato do que muitas vezes só podemos fazer: observar e estar presente. Um quadro de Luke Fildes, um pintor inglês do século XIX, "The Doctor".





Medicina

Quem disse que o paciente é o mais importante?
Se ele espera, paciente,
Ciente de todos os seus males,
É certamente um desocupado, um ignorante.

E o que dizer do cliente,
Que a mesma rima posso usar?
Este é o pior de todos.
Sempre esquecido pelos ausentes médicos.

O único a que se deve o respeito, caros colegas,
É aquele,
Escrito ainda nos rudimentos da humanidade:
O ser humano.


Matheus de A. Queiroz

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Andarilho





Andarilho


Tenho saudades.
Saudades do que não vivi.
Das velhas coisas de uma outra infância.
De uma outra vida.
De uma outra vida que não vivi.

Lembranças que acontecem.
Memórias de um passado.
Remoto, mas tão presente.
Que cirandam diante destas janelas.
E saem à porta desta casa.

E, ao fim do dia.
Quando o Sol se põe sob a terra molhada.
Ponho-me a andar.
Andar sobre trilhos.

E o caminho é cansaço.
A vida é curta.
Tão curta.
Como o pôr-deste-sol.



Matheus de A. Queiroz

Sobre o amor, as estações e outras paixões




Sobre o amor, as estações e outras paixões



nulla est sine amore poemata


Os poemas, emissários de terras desconhecidas, são o vento de outono; 
Soprando, soprano, a melodia daqueles dias estivais.

Os versos, breves e eternos, nascem em cada abrasado olhar despretensioso,
E desfalecem sob a chuva outonal.

Que dizer das rimas?
Meras agonistas risas, rasas? 
Remetem ao passar, estrada ao Castelo.

Cem poesias, um Castelo
Um Castelo, uma vida
Uma vida, o Amor
O amor, um verão de versos.

Matheus de A. Queiroz


quarta-feira, 24 de setembro de 2014

As coisas como são (e como deveriam ser)



As coisas como são (e como deveriam ser)



Pressa, pressão, impressão.                            
Todos, toscos, tangem
A vida que é viagem.

A vida que passa
Sem passo, compasso
É saudade pros esquecidos
E indiferença aos transeuntes.

E o desabrochar, desvencilhar,
Da morte em Vida,
Resume, ao indiferente transeunte,
O mistério da Graça.

Matheus de A. Queiroz